segunda-feira, 5 de março de 2012

O texto abaixo foi retirado do seguinte endereço:
http://cinemacompimenta.blogspot.com/2012/02/invecao-de-hugo-cabret.html

Entre os indicados aos prêmios da Academia de Hollywood este ano há, em alguns deles, uma curiosa interseção: um olhar para um passado vislumbrado como nostálgico e profícuo em termos artísticos. É assim com o retorno à Paris dos anos 20 promovido por Woody Allen em “Meia-Noite em Paris”, quando o alter-ego do diretor se encontra com vários grandes nomes da literatura, pintura e cinema. Destarte, outros dois longas dividem uma visão ainda mais específica ao focarem os primeiros tempos da Sétima Arte. “O Artista” retrata a Hollywood do final dos anos 20/início dos 30, época da grande depressão econômica e do advento do cinema sonoro. Já este “A Invenção de Hugo Cabret”, dirigido por ninguém menos que Martin Scorsese, volta seu olhar para os verdadeiros pioneiros da cinematografia, os desbravadores franceses que inventaram o cinema, tanto quanto experimento técnico-documental (os Irmãos Lumière), quanto como expressão artística e imaginativa (o cineasta Georges Meliès). Talvez seja ainda mais curioso perceber que um filme francês volta seu olhar para Hollywood, enquanto uma película norte-americana coloca seu foco no cinema francês.

É sabido que Scorsese não é apenas um dos cineastas mais importantes do cinema contemporâneo. Sua paixão pelo ofício também o transformou em um grande pesquisador da história cinematográfica, além de levá-lo a um trabalho de restauração de películas de relevante valor artístico. Lembrando destas suas nuances, é possível enxergar este seu novo longa como uma tradução deste seu trabalho como pesquisador e restaurador, pois que “A Invenção de Hugo Cabret” é, antes de mais nada, um tributo aos primeiros tempos do cinema. É sensível em toda a projeção a paixão que cada fotograma exala, a reverência de um cinéfilo àqueles responsáveis pela criação da arte em questão. Sabe-se, ademais, que Scorsese resolveu filmar a trama porque sua filha de 12 anos leu o livro de Brian Selznick (sobrinho-neto do lendário produtor David O. Selznick) e gostou muito, fato que levou sua esposa a sugerir “por que você não faz um filme que sua filha possa assistir?”. Tal circunstância também se faz notar nos seus 126 minutos de duração, dados o carinho e respeito com que o diretor trata os personagens.

Adaptado por John Logan (que já havia trabalhado com o diretor em “O Aviador”), o roteiro conta a história do garoto Hugo Cabret (Asa Butterfield), o qual, após o falecimento trágico do seu pai (Jude Law) passa a morar na Gare du Nord, famosa estação de trem em Paris, onde conserta e dá corda nos relógios que orientam passageiros e maquinistas. Vivendo de pequenos furtos, nas horas vagas o órfão tenta fazer um autômato voltar a funcionar, engenhoca que lhe foi deixada por seu pai e que ele acredita trará uma mensagem do seu genitor tão logo seja colocada em movimento. É tentando furtar uma peça necessária para o autômato que ele acaba sendo flagrado pelo dono de uma loja de brinquedos da estação (Ben Kingsley), o qual lhe confisca seu caderno de anotações. Tentando reaver o caderno, Hugo acaba conhecendo a sobrinha do proprietário da lojinha, Isabelle (Chloë Grace Moretz), uma garota inteligente que o ajudará na montagem do autômato e a resolver alguns mistérios que se seguirão.

Com um premeditado clima lúdico e de fantasia, o enredo se desenrola de maneira completamente envolvente, algo perfeitamente esperado de um diretor que dispensa apresentações. Com um ritmo irretocável ditado pela edição primorosa de Telma Schoonmaker, velha colaboradora de Scorsese, o longa ainda se destaca pela belíssima fotografia em 3D e aqui eu vou abrir parênteses. Honestamente, nunca havia assistido a um 3D tão eficiente quanto este. Acho que nem mesmo “Avatar” havia atingido um poder de imersão tão grande quanto aqui. Em algumas sequências, principalmente nos travellings iniciais, temos de fato a sensação de estar naquele ambiente, tamanha a eficácia do recurso (o que implica dizer que você perderá muito se não assistir ao filme em uma sala de projeção). Mas não é só no uso da terceira dimensão que a fotografia se apresenta notável. O uso da perspectiva de Hugo para mostrar o cotidiano das pessoas na estação é algo que remete ao cinema documental dos irmãos Lumière, estabelecendo o cinema como observador da realidade. No mesmo nível, a direção de arte também é perfeita tanto no auxílio ao tom de fábula, como na reconstituição de época, trazendo-nos uma linda Paris da primeira metade do século passado. Tudo isso auxiliado por um bom elenco, desde o veterano Kingsley ao garoto Asa, com seus expressivos olhos azuis, passando até por Sacha Baron Cohen (para a minha surpresa, pois não costumo gostar dos seus trabalhos), que interpreta o inspetor da estação que vive a perseguir o pequeno Cabret, todos entregam atuações competentes (de quebra, ainda temos uma participação elegante de Christopher Lee).
Mas as qualidades da produção vão bem além dos seus aspectos técnicos. Se Scorsese, como já frisado, presta reverência aos Irmãos Lumiére, criadores da Sétima Arte, por outro lado ele opera uma autêntica declaração de amor ao cinema enquanto magia, enquanto fábrica de sonhos aptos a encantar multidões, ou seja, o cinema tal como concebido por Georges Méliès, o primeiro artista a enxergá-lo como espetáculo. Méliès foi um visionário que entendeu por bem usar seus conhecimentos de ilusionismo como forma de enriquecer a narrativa exibida na tela, sendo, desta forma, considerado o pai dos efeitos especiais e dos filmes elaborados como entretenimento e fantasia.