Capítulo
UM
-SANGUE
INOCENTE-
Ian
Katz estava deitado em sua tenda quando os primeiros gritos de terror chegaram
em seus ouvidos. De imediato, ele soube o que estava acontecendo. Caminhando o
mais rápido que sua idade avançada lhe permitia, o curandeiro chegou à entrada
de seus aposentos, mas não a tempo de evitar que seus filhos Ien e Ianna
entrassem.
— O que está... — começou ele, mas a
filha o interrompeu.
— Os Kragen. — disse ela — invadiram o
vilarejo. Passaram por nossa barreira mágica, como se ela não existisse.
— Eles procuram pelo senhor, meu pai. —
disse Ien. — O que faremos?
Ian Katz respirou fundo antes de
responder.
— Levem-me até eles antes que destruam
toda a nossa vila.
— Mas, pai... — disse o rapaz.
— E rápido, meu filho. Ou mais sangue inocente
será derramado.
Escoltado pelos filhos, o velho
curandeiro deixou sua tenda e foi em direção ao centro do vilarejo, onde
dezenas de cavaleiros, armados com lanças e espadas, ostentavam os brasões dos
Kragen, na tentativa de intimidar seus adversários. Ian Katz não ficou surpreso
ao ver o rei, Nael Kragen, em pessoa, montado em seu corcel negro, o encarando
com seu semblante frio e cruel.
— Nael Kragen. — disse Ian Katz. — Faz
anos que não nos vemos, não é mesmo?
O rei fez sinal para dois de seus soldados
mais próximos o ajudassem a descer se de sua montaria. Em seguida, caminhou
alguns metros em direção ao líder dos Katz.
— Por que desfez a maldição que nos
impedia de andar pelas terras de Hindra? — perguntou o rei.
— Porque tive um motivo. — respondeu
Ian Katz.
O rei desembainhou sua espada. A lâmina
negra exibia um estranho brilho esverdeado. Ien e Ianna colocaram-se diante do
pai.
— Eu vou perguntar só mais uma vez. —
disse Nael Kragen — Meus feiticeiros captaram inúmeras vezes o brilho da Espada
Sven nas últimas semanas. E nós dois sabemos que ninguém nesse mundo seria capaz
disso, não é?
Ian Katz deixou escapar um sorriso.
— Digamos que aquele quem nós esperamos
durante anos, finalmente chegou.
— E quem é? — perguntou o rei. — E o
que você fez com meu filho Mez? Eu não consigo encontrá-lo em parte alguma.
— Talvez ele não queria ser encontrado.
— disse Ianna. — Ele não é como você!
— Cale-se, sua insolente! — disse o
rei. — Ou saberá o que acontece a todos aqueles que são tocados pela lâmina de
minha espada.
— Foi assim que matou o rei Gavin? —
perguntou a jovem, deixando claro que nem mesmo a figura do rei Nael Kragen a
intimidava.
Vários cavaleiros foram em sua direção.
Ian Katz e o filho colocaram-se em sua frente, para protegê-la. O rei falou:
— Se voltar a abrir essa boca suja sem
que eu lhe dê permissão, passará o resto dos seus dias em Confre.
Ianna ainda abriu a boca novamente, mas
foi contida pelo irmão.
— Quem fez com que a lâmina da espada
Sven brilhasse, velho? Conte-me agora ou eu vou...
— NÃO OUSE AMEAÇAR MEU PAI, Kragen! —
gritou Ien Katz.
Os cavaleiros ameaçaram um ataque mais
uma vez, mas Nael Kragen levantou sua mão e todos se contiveram.
Ian Katz coçou sua barba branca durante
longos minutos.
— É impressão minha ou Vossa Majestade
está temeroso?
O rei pareceu irritado.
— Vocês são como insetos, velho! —
disse ele. — Você e sua maldita gente não podem contra mim. Eu acabo com vocês
antes mesmo da batalha começar.
Ien tomou a palavra.
— Será que Vossa Majestade aceitaria
lutar com um de nossos guerreiros? Eu, por exemplo?
Nael Kragen se aproximou.
— Você seria bem menos covarde, se
viesse até aqui sem essa maldita espada. — disse Ianna.
— O quê? — perguntou o rei.
— Você nunca teria vencido o rei Gavin,
se Thora não tivesse enfeitiçado a lâmina de sua espada. — Ianna gritava com
toda a sua força. — Você não passa de um Grosen
nojento, que teve a sorte de evoluir.
Nael Kragen avançou sobre ela com sua
espada, mas Ien se pôs entre os dois, sendo atingido na altura do abdômen.
— Nããão! — gritou Ianna, ao ver o
sangue do irmão jorrar pela ferida.
— KRAGEN! — berrou Ian Katz. — Você pagará
por isso com sua própria vida.
Do nada, círculos de fogo apareceram no
céu e cercaram a todos. O rei e seus cavaleiros permaneceram imóveis. O sangue
do filho de Ian Katz ainda pingava na grama verde quando algumas pessoas próximas
começaram a gritar. Todos os cavaleiros e até o mesmo o rei atiraram-se ao
chão.
— Em nome do Grande Criador, o que está
acontecendo? — perguntou um soldado do rei, ao ver dois dos cavalos reais serem
consumidos pelas chamas.
— Atenção, Guerreiros do Povo Katz... A
ordem é atacar! — gritou Ian Katz.
Quando os anéis de fogo sumiram, Nael
Kragen e seus cavaleiros viram-se cercados por todos os lados.
Ianna permanecia no chão, ajoelhada ao
lado do irmão, que agonizava.
— M...Minha irmã...
— Não fale nada. — disse ela — Foi tudo
minha culpa. Eu nunca deveria ter dito aquilo. Papai vai ajudá-lo. Por favor,
aguente firme.
— L...Liah... — disse Ien, com os olhos
fechados. — Quando ela tiver as... as memórias... do... do medalhão, ela vai
saber da... da verdade.
— Que verdade? Do que você está
falando?
— Do... Do irmão dela. Aquele que...
que nasceu antes do rei Gavin se casar com... com a Rainha.
— Que irmão?
— O...O garoto...
Ien Katz parou de falar. A vida já não
habitava mais seu corpo. Ianna entrou em desespero.
— Pai! Pai, o que faremos?
Ian Katz abaixou seu olhar e contemplou
tristemente o corpo do filho. Em seguida, pegou sua antiga espada, que havia
sido passada ao filho em sua maioridade hindraniana e disse:
— Venha, Kragen!
— O QUÊ? — perguntou o rei, que ria
abertamente. — Não seja ridículo! Eu não duelo com velhos!
Ian Katz avançou sobre seu inimigo, que
se defendeu de imediato. O barulho das lâminas, ao se tocarem, foi tão alto,
que vários cavaleiros viraram-se para observar a cena.
— Pai! — gritou Ianna, que parecia não
acreditar no que via.
Ian Katz era velho, mas sua agilidade
com a espada superava e muito a de seu adversário. Por diversas vezes, Nael
Kragen fora empurrado ou mesmo derrubado no chão. A cada novo choque entre as
espadas, o vilarejo inteiro parecia tremer. Ianna assistia ao pai lutar contra
o homem que assassinara seu irmão, perplexa e assustada.
— Desista, velho! — gritou o rei. — E
talvez eu só o mande para Confre,
pelo resto dos seus dias.
Ian Katz ignorava cada palavra de seu
opositor e Nael Kragen já dava sinais de cansaço.
Ao redor, todo o vilarejo dos Katz
estava em guerra. Cavaleiros que já haviam sido mortos eram pisoteados por seus
companheiros de batalha, enquanto estes tentavam, a todo custo, salvar suas
próprias vidas.
Ianna agora estava de pé. Suas lágrimas
ainda molhavam o seu rosto, mas ela já segurava seu arco e posicionava uma
flecha em seu alvo.
— Ahhhhh! — gritou Nael Kragen, no
exato momento em que uma flecha da garota acertara sua mão, fazendo-o largar a
espada no chão.
Ian Katz olhou para a filha,
satisfeito. Depois, virou-se para o rei e sorriu.
— Deixe-me apenas terminar o serviço,
Majestade.
Com um golpe seguro de sua espada, o
velho curandeiro decepou o que havia restado da mão de Nael Kragen no fim de
seu braço. O grito do rei foi tão alto que chamou a atenção dos muitos
cavaleiros que ainda lutavam com os guerreiros Katz. Ian Katz se aproximou.
— Com essa mão, você matou meu amigo
Gavin e meu filho Ien. Mas você não vai mais usá-la para atingir ninguém. Nem
mesmo seus feiticeiros serão capazes de colocá-la outra vez no lugar.
Largando a espada no chão, Ian Katz fez
jorrar de sua mão uma luz laranja, que atingiu a mão de Nael Kragen, que havia
sido cortada durante a luta. O membro rapidamente se incendiou e se transformou
em cinzas, que se perderam no ar da noite.
— PRENDAM-NOS! — gritou o rei, cheio de
cólera.
Ianna não teve forças para lutar. Seu
arco caiu no chão no exato momento em que três cavaleiros a imobilizaram e
puseram grossas correntes em seus braços. Ian Katz fora agarrado pelos cabelos
e levado até bem perto de Nael Kragen, para que este ditasse sua sentença. O
curandeiro não demonstrava qualquer medo.
— Vossa Majestade quer que o matemos? —
perguntou um soldado.
— Ainda não. — disse o Rei. — Sinto que
ele ainda me será útil. Você vai adorar a prisão de Confre, seu velho maldito. Lá, terá tempo o bastante para pensar no
que fez ao Rei de Hindra. Levem os dois para as masmorras mais profundas de Confre. Eu os quero isolados e sem nada
para comer ou beber até que eu lhe avise para fazerem. LEVEM-NOS!
Ian Katz e sua filha foram acorrentados
aos cavalos e levados para longe de seu tão amado vilarejo. Para trás, deixavam
um povo inconformado com tamanha violência e impiedade. No chão, em meio ao sangue
de todos os que haviam perdido suas vidas na batalha, o corpo de Ien jazia em
silêncio, rodeado de amigos de infância e parentes.
Nael Kragen aproximou-se depois que seu
ferimento havia sido todo envolto em túnicas reais.
— Quero este vilarejo cercado e vigiado
o tempo todo. Ninguém entra ou sai dele sem que eu saiba ou ordene. Vocês
entenderam?
Os soldados confirmaram com a cabeça e
o rei voltou ao seu cavalo, que o conduziu para a escuridão da floresta.
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